Diferente de alguns segmentos musicais como o rock, o country ou mesmo o jazz, gêneros caracterizados por uma série muito específica de elementos como instrumentação, temática, ritmo e etc., quando se fala sobre música pop, esse conceito de identificação acaba se tornando um tanto quanto abstrato. Menos uma questão de estilo e muito mais próximo das tendências do público jovem do seu tempo e, principalmente, dos anseios da indústria fonográfica, a música pop pode ser definida como uma espécie de criatura altamente adaptável e em constante estado de mutação. Ainda que exista, talvez num campo mais subjetivo, particularidades como certa inclinação por temas românticos que aproxime para um mesmo balaio momentos musicais tão díspares como a intimista Close To You, dos Carpenters, clássico do gênero na década de 70, de algo como Never Be the Same, da ex-Fifth Harmony Camila Cabello, um dos maiores hits da música pop do ano até então, por exemplo.
Se num panorama geral, onde se pode chegar num entendimento de que, quando falamos sobre música pop, falamos mais sobre uma certas essências temáticas/musicais e tendências mercadológicas do que sobre um conjunto de códigos e regras específicos que definem um gênero, qual seria a conjuntura da música pop em 2018 e o que esse cenário pode dizer sobre o futuro do gênero?
Para pensar como chegamos a cena contemporânea, é necessário voltarmos a meados da década passada, onde a indústria fonográfica, ao passar a ter um pouco menos de controle sobre o que público consumia, já que os dispositivos de compartilhamento de arquivos, que viviam o ápice da sua existência, permitiram a esse mesmo público um senso de descoberta e independência nos seus hábitos de consumo, se viu diante da necessidade de incorporar algumas tendências, assim como de desmarginalizar outras. Se você foi um adolescente nessa época, esse foi o momento onde o indie rock invadiu as telas da MTV e as faixas de hip hop começaram discretamente a invadir a memória do seu iPod.
Paralelamente, na cena mainstream, Justin Timberlake trazia não só o sexy de volta com seu lançamento mais recente, o cultuado FutureSex/LoveSounds, mas também mudava os mecanismos com que toda uma geração de artistas passou a produzir música pop. Ainda que, Timberlake e Timbaland, produtor do disco, não tenham sido os proponentes direto dessa maneira de pensar arranjos e batidas que fugissem da obviedade do que era produzido nesse segmento naquele momento (e vale salientar que artistas como a sueca Robyn ou mesmo a norueguesa Annie já haviam previsto em anos anteriores a incorporação de elementos da música eletrônica em um patamar mais pop e dançante), o material apresentado em FutureSex/LoveSounds foi o primeiro indício que a música pop estava prestes a alçar um novo patamar na sua existência.
Nos anos que seguiram o lançamento de FutureSex/LoveSounds, todo grande ícone pop tirou uma casquinha ou se projetou de forma intensa através dos novos recursos de produção e das inúmeras tendências que surgiam da música eletrônica. Nos últimos doze anos, o pop foi do EDM ao dubstep, do dubstep ao synthpop, do synthpop ao bubblegum bass. A indústria fonográfica assimilou cada um dos segmentos, obscuros ou não, da produção eletrônica.
Pensando nisso e levando-se em conta que é tão complexo quanto meio incerto mapear uma espécie de estado do gênero por mais de dois anos, selecionamos uma pequena amostra de músicas lançadas entre o ano de 2017 e 2018 até o momento. Não tanto como uma lista que se quer definitiva, mas que procura analisar a diversidade do cenário, as circunstâncias de como se faz música pop hoje e também as possibilidades de como o gênero pode vir a soar daqui a alguns anos.
Arca – “Desafío“
Com o seu terceiro disco de estúdio, o venezuelano Alejandro Ghersi provou de vez por todas porque é considerado o sucessor natural do pop avant garde que a islandesa Bjork produz há mais de duas décadas. Num trabalho que é um desses completos pontos de virada na carreira de um artista, que no caso do venezuelano já contava com uma identidade visual e sonora muito sólida e específica, Arca deu a cara e a voz a tapa, se tornando um personagem dentro do seu próprio universo. Até porque afinal, que outro meio haveria para se lidar com um material que pontua de maneira tão particular as dores do fim de um amor que não a própria entrega?
Se numa perspectiva mais ampla Desafío é o completo oposto de tudo que toca nas rádios no dia de hoje – e que sejamos sinceros, está muito longe de projetar qualquer tendência do pop pelas próximas décadas – a existência de uma canção que se esforça, mesmo na sua maneira excêntrica, queer, estrondosa, suja e agressiva, tanto em brincar com esses pequenos conceitos do que é uma música pop numa esfera à margem do mainstream (e o Arca nunca havia soado tão melódico até então), é por si só digna de nota. A música pop pode ser aquilo que o artista quiser.
Brockhampton – “Boogie“
Com um background digno de uma narrativa cinematográfica, numa história onde um grupo de amigos do Texas que se conheceram num fórum virtual dedicado ao rapper Kanye West, junta suas habilidades individuais para tentar a carreira artística na Califórnia, o Brockhampton é uma boyband em plena ascenção, formada por nada menos que 14 membros (entre MCs, produtores e designers), que atuam dentro e fora do gerenciamento da produção musical e visual do grupo. Só no último ano, foram três discos lançados num período de 6 meses, numa coletânea extremamente versátil, cheia de variações estilísticas e temáticas do hip hop.
Boogie, carro-chefe da terceira parte da trilogia Saturation, é o momento que mais aproxima o grupo dessa pré-concepção que fazemos de uma boyband: coreografia, figurinos combinados e uma batida perfeita para tirar o pé do chão, ainda que no geral esteja bem longe de soar nostálgica. Ao contrário, o grupo passa os elementos desse pop chiclete feito no final dos anos 90/começo dos 2000 sob seu filtro criativo. Em certo momento da faixa, o beat efusivo e grudento que em looping parece repetir uma espécie de ‘wow wow’ se mistura ao sample de um saxofone e a outro de uma buzina, enquanto os garotos rimam com fúria em versos que discutem o peso do reconhecimento repentino dos últimos meses. O resultado é muito mais cacofônico e caótico do que o pop do começo desse século jamais seria.
Se o Brockhampton está redefinindo o termo boyband apenas por se auto proclamarem uma, Boogie é certamente a sacramentação do grupo como um ícone pop. Best boyband since One Direction, sem dúvida alguma.
Carly Rae Jepsen – “Cut to the Feeling”
Cut to the Feeling é em síntese tudo que a gente espera de uma música pop: uma melodia solar, vocais calculadamente doces e um refrão pegajoso que cresce a cada novo verso. Então por quê diabos essa música não passou os últimos meses no topo das paradas de sucesso?
É de certa forma irônico (e bem triste também) que o mesmo público que abraçou o estrondoso hit de Call Me Maybe da canadense há 6 anos não dê a mínima bola pro precioso trabalho que Jepsen, que cresceu muito como artista, vem fazendo desde o lançamento de E.MOTI.ON em 2015, o grande tratado da música pop dessa década. Carly é hoje uma das poucas artistas em atividade que se preocupa em preservar uma essência mais clássica, oitentista e até meio inocente do gênero que, no caso, parece estar em descontexto quando comparado com o que está em voga nos charts atualmente. Se há um impasse entre Cut to the Feeling e o pop dos dias de hoje, o problema certamente não está na artista.
Charli XCX – “Boys”
Não há ninguém na cena mainstream que tem se esforçado tanto para conduzir a música pop para o futuro quanto Charli XCX (levando em conta que a Grimes já vislumbra desse lugar há um bom tempo). Não só uma grande hitmaker, mas também uma entusiasta do gênero, seu trabalho mais recente com o conterrâneo A.G. Cook da PC Music – o berço da cena bubblegum bass e segmento que parece interessar cada vez mais a produtora – Pop 2, é um exercício de estilo e uma curadoria muito pertinente, que pontua com maestria quem é quem na música pop nos dias hoje.
Boys, lançada meses antes da mixtape, acabou ficando fora dessa conta, mas é certamente precursora espiritual na maneira como também imerge nos mesmos glitchs e beats metálicos que tanto caracteriza a produção de Pop 2. Um hino sobre desejo e liberdade sexual feminina que ganhou corpo num videoclipe que já nasceu épico.
Let’s Eat Grandma – “Falling Into Me”
Se lembra no começo dessa década quando nomes como CHVRCHES, Disclosure, Empress Of e AlunaGeorge pipocaram como a nova esperança da música pop frente a um cenário dominado por um electro pop farofa, oferecendo uma mistura que variava entre synthpop, house music e R&B, gerando um buzz inesperado pra cena alternativa e N números de projetos que tentaram miseravelmente se projetar nessa tendência? O que no caso da indústria fonográfica é até natural.
Falling Into Me, carta de apresentação do mais novo trabalho das britânicas do Let’s Eat Grandma, dupla formada pelas amigas de infância Jenny Hollingworth e Rosa Walton, no entanto, é a evolução tão esperada desse segmento mais alternativo do pop – principalmente quando boa parte desses mesmos expoentes falharam em empreitadas posteriores aos seus primeiros lançamentos. A faixa, que se desembrulha em três camadas bem distintas, passeia pelas mesmas bases que orientam o synthpop cintilante de músicas como Lies do CHRVCHES ou os beats prontos pra pista de alguma gravação da Robyn, mas curiosamente soa bem mais autêntica que protocolar. É desde já a grande promessa do gênero pra 2018.
Lorde – “Green Lights”
Royals, quando estourou nas paradas em meados de 2013, era praticamente a antítese de tudo que se entendia por música pop naquele momento. Com uma atitude descoladamente blasé, uma visão muito intimista da agonia juvenil e um punhado de batidas minimalistas, não demorou muito pra que a neozeolandesa Ella Yelich-O’Connor, aos 16 anos, fosse proclamada como a voz da sua geração. No entanto, pra onde exatamente você parte depois de receber tal alcunha de maneira tão precoce?
O caminho que Lorde adota em Green Lights é simples (o que é diferente de simplório) e o extremo oposto à expectativa do público: uma canção que não tem receio algum de soar deliberadamente… pop! Uma ode aos romances que não deram certo e que podem, nesse universo musical considerado tão frívolo, serem exorcizados sem culpa numa pista de dança. É maturidade que fala, né?
Rina Sawayama – “Take Me As I Am”
Mesmo todo o cenário musical respirando um revival dos anos 90 há alguns bons anos, a chegada do primeiro trabalho em estúdio de Rina Sawayama, cantora e compositora japonesa radicada no Reino Unido, pegou todo mundo de surpresa no último ano. Flertando com o R&B e com o mesmo pop melódico que abasteceram todo uma indústria há duas décadas, mas num obra que tem plena lucidez de trabalhar essas referências pensando sobre o presente, o disco produzido em parceria com o produtor britânico Clarence Clarity é uma declaração de que toda uma cena está prestes a mudar.
É incrível como cada uma das oito faixas do disco se preocupa em pensar como o pop dos anos 90 soaria se fosse feito num futuro distante. Cyber Stockholm Syndrome leva o legado de Aaliyah para um campo mais eletrônico, espacial e efusivo, enquanto Take Me As I Am, a cereja do bolo, soa como se a Britney de Baby One More Time estivesse gravando o tema de um filme da Disney abertamente feminista em 2030. Em síntese, é uma canção sobre empoderamento, sobre se aceitar e pedir que o mundo te aceite como você é, que fala muito sobre o embate da cantora e compositora frente à uma indústria cheia de padrões restritos (que deveriam ser sobre talento, mas todo mundo bem sabe que não é), sobre quem pode e quem não pode ser a cara da música pop.
SOPHIE – “It’s Okay To Cry”
Ao lado de A.G. Cook, SOPHIE talvez tenha sido a figura que mais ajudou a disseminar a cena bubblegum bass, subgênero derivado do electro pop que trabalha em uma camada extremamente amplificada os elementos da produção eletrônica com melodias e vocais adocicados da música pop, pra um escopo mais comercial da música. Só nos últimos anos,a britânica assinou produções em faixas de artistas como Madonna, Vince Staples, Cashmere Cat e Charli XCX, que se tornou uma de suas parceiras habituais, além de uma produção autoral extremamente sofisticada que, faixa a faixa, desafiava a ideia que se fazia do gênero quando ele surgiu no começo dessa década.
Mais intimista e pessoal e bem menos efusiva que seu material de estreia, o que It’s Okay To Cry trás pra cena é, para o público, a revelação de quem estava por trás de todas essas faixas que embalaram a cena pop nos últimos cinco anos, já que até então sua identidade permanecia como um certo mistério, e, para a produtora, uma espécie de libertação.
Numa canção que lida diretamente com questões identitárias, ‘Eu espero que você não leve a mal, mas eu acho que seu interior é o seu melhor lado’, declama a mesma na ponte que antecede o explosivo refrão, SOPHIE aproveita cada oportunidade pra imprimir a imagem que enfim decidiu mostrar ao mundo. No caso da faixa em questão, ressalta muito o fato de que, pela primeira vez, escutamos sua voz e não os vocais em high pitch pela qual a produtora era conhecida. A arte enquanto uma demanda de representatividade.