É possível a celebração de contrato de terceirização de serviços prestados pelas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) junto à iniciativa privada com fins lucrativos, desde que seja demonstrado no plano municipal de saúde ou instrumento congênere o caráter complementar da contratação desses serviços, para o incremento na prestação dos serviços de saúde municipal.
Para tanto, é necessária a comprovação de que a contratação será realizada para suprir a insuficiência das disponibilidades estatais e garantir a cobertura assistencial à população; e deve ser demonstrada a ausência de vantagens ou a impossibilidade de se dar preferência às entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, como dispõem o artigo 199 da Constituição Federal e as demais normativas do Sistema Único de Saúde (SUS) que o seguem.
A contratação parcelada dos serviços de assistência à saúde deve ser a regra, nos termos do artigo 23, parágrafo 1º, da Lei Federal nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos) e do artigo 47 da Lei Federal nº 14.133/21 (Nova Lei de Licitações e Contratos). Assim, para que seja realizada a contratação unificada dos serviços de assistência à saúde a serem prestados por meio das UPAs, a administração deve demonstrar a viabilidade técnica e as vantagens econômicas desse tipo de contratação, bem como o ganho com a economia de escala dela decorrente.
Para essa demonstração, pode ser levada em consideração a probabilidade de prorrogação dos contratos de serviços, permitida pelas disposições do artigo 57, inciso II, da Lei Federal nº 8.666/93 – prazo máximo de 60 meses – ou dos artigos 106 e 107 da Lei Federal nº 14.133/21 – prazo máximo de dez anos para os contratos de serviços continuados, assim definidos pelo respectivo artigo 6º, inciso XV.
A administração não poderá transferir, por meio das contratações indiretas de serviços de assistência à saúde, o exercício da gestão em saúde para a iniciativa privada, pois isso somente é possível nas hipóteses de celebração de contrato de gestão com entidades privadas sem fins lucrativos qualificadas como organizações sociais (OSs), nos termos da Lei Federal nº 9.637/98; ou de celebração de parceria público-privada na modalidade concessão administrativa, nos termos da Lei Federal nº 11.079/14. Nesse caso, devem ser demonstradas a insuficiência das disponibilidades ofertadas pelo ente para garantir a cobertura assistencial aos usuários do SUS e as vantagens na transferência do gerenciamento das unidades de saúde, em respeito ao pressuposto da complementariedade na participação da iniciativa privada junto ao SUS.
É possível a contratação de serviços médicos mediante licitação pelo critério de julgamento de menor preço, de maneira parcelada ou unificada a outros serviços comuns de assistência à saúde, desde que sejam atendidas as condicionantes anteriormente indicadas; e desde que esses serviços estejam relacionados ao atendimento dos órgãos que integram o SUS e que haja definição objetiva, no edital, de seus “padrões de desempenho e qualidade”, “por meio de especificações usuais do mercado”, nos termos do artigo 2º-A, inciso I, da Lei Federal nº 10.191/01.
Nesses casos, deve ser empregada preferencialmente a modalidade pregão, na forma eletrônica, caso adotado o regime da Lei Federal nº 8.666/93, admitida a opção, mediante justificativa adequada, pela forma presencial ou pelas modalidades previstas no respectivo artigo 23, II; e deve ser obrigatoriamente adotada a modalidade pregão, preferencialmente na forma eletrônica, caso adotado o regime da Lei Federal nº 14.133/21, admitida a opção, mediante justificativa adequada, pela forma presencial.
Essa é a orientação do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR), em resposta à Consulta formulada pelo Município de Cambé (Região Norte), por meio da qual questionou sobre a possibilidade de celebrar contrato único de terceirização de serviços prestados pelas UPAs, em caráter complementar, desde que a gestão – definição da política de atendimento dos serviços – continue a cargo da administração pública municipal.
Instrução do processo
Segundo o parecer da assessoria jurídica do consulente, é legal a terceirização dos serviços da UPA desde que seja evidenciado de forma clara e objetiva que se trata de serviço complementar de saúde prestado pelo município; e desde que não haja afronta ao princípio do concurso público, devendo ser tomadas todas as medidas administrativas, como adequação do quadro de cargos e suas atribuições, previamente à publicação do edital.
A Coordenadoria de Gestão Municipal (CGM) do TCE-PR afirmou que é possível a celebração de contrato de terceirização tradicional para atender secretaria municipal de Saúde, desde que seja demonstrado o caráter complementar da contratação aos serviços de saúde prestados pelo município, para incremento na prestação dos serviços das UPAs.
A unidade técnica ressaltou que a contratação parcelada dos serviços de assistência à saúde deve ser a regra; mas que a contratação unificada dos serviços a serem prestados através da UPA pode ser realizada mediante a demonstração da sua viabilidade técnica e da vantagem econômica, bem como o ganho com a economia de escala.
A CGM destacou que a licitação a ser realizada deve ser do tipo menor preço, nas modalidades Pregão ou Concorrência, se adotado o regime da Lei 8.666/93; ou Pregão, se adotado o regime da Lei 14.133/21.
O Ministério Público de Contas (MPC-PR) concordou com o posicionamento da unidade técnica. O órgão ministerial reforçou que a administração não poderá transferir, por meio das contratações indiretas de serviços de assistência à saúde, o exercício da gestão em saúde para a iniciativa privada, o que somente é possível de ocorrer, por força de lei, nas hipóteses de celebração de contrato de gestão celebrados com entidades privadas sem fins lucrativos qualificadas como organizações sociais ou da concessão de parcerias público-privadas, tipo concessão administrativa.
O MPC-PR frisou que, para tanto, devem ser demonstradas a insuficiência das disponibilidades ofertadas pelo ente para garantir a cobertura assistencial aos usuários do SUS e as vantagens na transferência do gerenciamento das unidades de saúde, em respeito ao pressuposto da complementariedade na participação da iniciativa privada junto ao SUS.
Legislação e jurisprudência
O inciso I do artigo 30 da Constituição Federal (CF/88) fixa que compete aos municípios legislar sobre assuntos de interesse local.
O inciso II do artigo 37 da CF/88 dispõe que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei, de livre nomeação e exoneração.
O artigo 196 da CF/88 estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
O artigo 199 da CF/88 expressa que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada; e o seu parágrafo 1º fixa que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do SUS, segundo suas diretrizes, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
O artigo 24 da Lei nº 8.080/90 (Lei do SUS) dispõe que, quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada; e, em seu parágrafo único, fixa que a participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público.
O parágrafo 1º do artigo 23 da Lei Federal nº 8.666/93 estabelece que as obras, serviços e compras efetuadas pela administração serão divididas em tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à licitação com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e à ampliação da competitividade sem perda da economia de escala.
O inciso II do artigo 57 da Lei Federal nº 8.666/93 fixa que a duração dos contratos ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, que deverão ter a sua duração dimensionada com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a duração a 60 meses.
O inciso XV do artigo 6º da Lei Federal nº 14.133/21 considera serviços e fornecimentos contínuos os serviços contratados e as compras realizadas pela administração pública para a manutenção da atividade administrativa, decorrentes de necessidades permanentes ou prolongadas.
O inciso II do artigo 47 da Nova Lei de Licitações e Contratos expressa que as licitações de serviços atenderão ao princípio do parcelamento, quando for tecnicamente viável e economicamente vantajoso.
O artigo 106 da Lei Federal nº 14.133/21 dispõe que a administração poderá celebrar contratos com prazo de até cinco anos nas hipóteses de serviços e fornecimentos contínuos, desde que sejam observadas as diretrizes elencadas em seus incisos.
O artigo 107 da Nova Lei de Licitações e Contratos estabelece que os contratos de serviços e fornecimentos contínuos poderão ser prorrogados sucessivamente, respeitada a vigência máxima de dez anos, desde que haja previsão em edital e que a autoridade competente ateste que as condições e os preços permanecem vantajosos para a administração, permitida a negociação com o contratado ou a extinção contratual sem ônus para qualquer das partes.
O artigo 3º da Portaria nº 2.567/16 do Ministério da Saúde (MS), que regulamenta a participação complementar da iniciativa privada na execução de ações e serviços de saúde e o credenciamento de prestadores de serviços de saúde no SUS, estabelece que, nas hipóteses em que a oferta de ações e serviços de saúde públicos próprios forem insuficientes e comprovada a impossibilidade de ampliação para garantir a cobertura assistencial à população de um determinado território, o gestor competente poderá recorrer aos serviços de saúde ofertados pela iniciativa privada.
O artigo 130 da Portaria de Consolidação nº 1/17 do MS expressa que, nas hipóteses em que a oferta de ações e serviços de saúde públicos próprios forem insuficientes e comprovada a impossibilidade de ampliação para garantir a cobertura assistencial à população de um determinado território, o gestor competente poderá recorrer aos serviços de saúde ofertados pela iniciativa privada.
Por meio da decisão monocrática do ministro Roberto Barroso, proferida no Recurso Especial 1188535/SOP, o Supremo Tribunal Federal (STF) reforçou a constitucionalidade da qualificação de entidade como OS com o fim de formalização de contrato de gestão da UPA.
O Acórdão nº 244/23 do Tribunal Pleno do TCE-PR (Consulta nº 652627/21) dispõe que é possível a celebração de contrato de gestão com OS para o gerenciamento de serviços de saúde em UPA, desde que as disponibilidades já ofertadas de ações e serviços de saúde pelo ente público sejam comprovadamente insuficientes para garantir a cobertura assistencial aos usuários do SUS, nos termos da Lei do SUS.
Ainda conforme esse acórdão, somente é possível a celebração de contratos de gestão com OSs qualificadas no âmbito do próprio ente que pretende contratualizar a gestão, por meio da edição de lei local. Caso a qualificação seja efetuada por outro ente da federação, ocorrerá violação aos princípios constitucionais da separação dos poderes, do caráter federativo e da autonomia do ente.
Decisão
O relator do processo, conselheiro Ivens Linhares, lembrou que, em regra, os serviços públicos de saúde devem ser prestados de maneira direta, mediante a estrutura e corpo de pessoal próprios dos órgãos e entes públicos. Mas ele afirmou, contudo, que a Constituição Federal permite a participação complementar da iniciativa privada no âmbito do SUS, conforme disposição do parágrafo 1º do seu artigo 199.
Linhares explicou que a Lei 8.080/90 esclarece que a participação suplementar poderá ocorrer quando a estrutura própria do SUS for insuficiente. Assim, ele entendeu que é admissível a participação complementar com caráter subsidiário.
O conselheiro ressaltou que, além da necessidade de prévia demonstração da inviabilidade da prestação das ações e serviços de saúde de modo direto, é necessário assegurar a preferência às entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, que somente poderão ser preteridas caso a administração demonstre a ausência de vantagens ou a impossibilidade de prestação dos serviços por meio dessas entidades, nos termos do artigo 130 da Portaria de Consolidação nº 1/17 do MS.
O relator destacou, ainda, que a comprovação do caráter complementar exigido pela Constituição Federal ao autorizar a atuação da iniciativa privada na área da saúde deve ser efetivada em relação à gestão municipal da saúde como um todo, e não isoladamente, em relação às atividades das UPAs, pois essas atividades podem ser integralmente operacionalizadas pela entidade privada.
Além disso, Linhares concordou com a CGM e o MPC-PR quanto à possibilidade de celebração de contrato único de terceirização dos serviços prestados pelas UPAs. Mas ele lembrou que aquela possibilidade está condicionada ao afastamento da regra da contratação parcelada, por meio da prévia demonstração da viabilidade técnica, das vantagens econômicas ou do ganho de escala com a contratação de forma unificada.
O conselheiro reforçou que não é possível transferir à iniciativa privada o exercício da gestão em saúde, exceto em caso de celebração de contratos de gestão com entidades privadas sem fins lucrativos qualificadas como OSs, nos termos da Lei Federal nº 9.637/98; ou em caso de celebração de parcerias público-privadas do tipo concessão administrativa, nos termos da Lei Federal nº 11.079/14.
O relator ainda ressaltou que, em caso de adoção da sistemática da Lei Federal nº 8.666/93, deve ser priorizada a realização do pregão na forma eletrônica em relação à forma presencial e à modalidade concorrência; e, em caso de adoção da sistemática da Lei Federal nº 14.133/21, deve ser priorizada a forma eletrônica sobre a presencial.
Os conselheiros aprovaram o voto do relator por maioria absoluta, na Sessão Ordinária nº 40/23 do Tribunal Pleno do TCE-PR, realizada em 6 de dezembro. O Acórdão nº 377123 – Tribunal Pleno foi disponibilizado em 13 de dezembro, na edição nº 3.122 do Diário Eletrônico do TCE-PR (DETC). O processo transitou em julgado em 26 de janeiro de 2024.