O dia 5 de junho de 1994 ficou marcado como a data da maior apreensão de cocaína da história do Brasil e uma das maiores do mundo. Depois de mais de um ano de investigações, a Polícia Federal encontrou 7 toneladas da droga pura, escondidas em meio a 20 toneladas de tabaco em uma fazenda no Tocantins. Sete pessoas ligadas ao poderoso Cartel de Cali, da Colômbia, foram presas. Entre elas, o então líder do braço do grupo criminoso Nasrat Mohamed Jamil Rassout, de Foz do Iguaçu. A reportagem é da Folha de Londrina feita pelo jornalista Celso Felizardo. A foto é de Ricardo Chicarelli.
A exemplo de João Guilherme Estrella, produtor musical e ex-traficante que teve sua vida contada no livro “Meu Nome Não É Johnny”, de Guilherme Fiúza, e no filme homônimo de 2008, Jamil garante que deixou o passado criminoso para trás e hoje vive de fazer palestras com o objetivo de testemunhar que todas as pessoas podem ser ressocializadas. “Se eu consegui, qualquer um pode”, considera. Vinte e três anos depois, ele ainda diz temer represálias. Jamil aceita conceder entrevista desde que nomes e datas não sejam detalhadas.
Nascido no interior do Líbano, Jamil mudou-se para Foz do Iguaçu aos 21 anos. O objetivo era cursar a faculdade de Odontologia e retornar à terra natal. Porém, a verve de comerciante falou mais alto. Investiu uma herança de 50 mil dólares em algumas lojas. Sem dominar o português, se viu em grandes dificuldades. “Fui enganado, traído. Perdi tudo o que tinha”, conta. Com uma segunda chance em mãos, outra herança duas vezes maior que a primeira, novamente terminou sem nada. “A pessoa em quem eu mais confiava me traiu”, diz, sem especificar quem, indicando ser alguém da família.
Nessa época, Jamil flertou com o crime pela primeira vez. “Tinha esposa, três filhos e uma casa em construção. Começou a faltar tudo. Minha mulher passou a sustentar a casa. Para mim, um árabe, aquilo era o fim do mundo. Decidi que faria qualquer coisa para sair daquela situação”, lembra. “Não que justifique o que eu fiz. Tudo começou por uma suposta necessidade”, acrescenta. Um dia, já no final dos anos 1980, recebeu uma ligação com uma proposta para trabalhar como representante comercial porque falava inglês bem. “Logo descobri que era mentira, mas as circunstâncias me fizeram perder o sentido de certo e errado. Fui parar no tráfico”, relata.
Segundo Jamil, a intenção era “fazer uma vez e parar”, mas a tentação foi mais forte. “Decidi que queria ficar em paz, mas um dia recebi uma ligação com uma proposta de 1 milhão de dólares. Quando abriram aquela maleta na minha frente, minha cabeça mudou. É uma sensação de poder tremenda. É a lavagem cerebral que o dinheiro faz.” O que Jamil não imaginava é que o preço a ser pago era alto demais. “Perdi o convívio com a minha família. Recompensava minha presença com presentes. Acabei me divorciando e fiquei solitário, com muito dinheiro, mas sem amigos.”
BÊNÇÃO NEGADA
Já nos anos 1990, o milionário Jamil foi visitar a mãe no Líbano. Pediu para que ela escolhesse qualquer propriedade, que ele compraria porque “dinheiro não era problema”. “Ela não aceitou meu dinheiro e nós brigamos. Fui embora sem falar com ela.” A tentativa de reconciliação se deu dias depois. “Estava no Aeroporto de Nova Iorque e, por telefone, pedi a bênção dela. Naquele dia foi a primeira vez que ela não me chamou de filho e se negou a me abençoar”, relembra. “Além de ser bíblico é real: não ter a bênção dos pais só traz coisas ruins. A partir desse dia, o crime que era organizado passou a ser desorganizado. Tudo desandou e nada dava certo. Vivia em perigo.”
A maré de azar se arrastou até 1994, quando foi preso no Tocantins. Segundo ele, a prisão foi um “ponto de restauração”. Comoveu-se com a atitude de um policial que lhe deu água para beber após horas algemado no calor escaldante. “No começo, achei que minha vida terminaria ali, mas não foi o que aconteceu. Dentro da prisão da Superintendência da Polícia Federal em Brasília, eu, muçulmano, comecei a ler a Bíblia, único livro disponível, só por curiosidade. Mas ali começou minha conversão ao cristianismo”, conta.
UM CELULAR NA PAPUDA
Um dia, dentro da Penitenciária da Papuda, unidade de segurança máxima em Brasília, Jamil conseguiu entrar em contato com a mãe por meio de um celular. “Não me pergunte como isso aconteceu, mas quando vi o aparelho na minha frente, meu único impulso foi o de ligar para minha mãe. Consegui ligar para o Líbano de dentro da prisão. Contei que estava arrependido e pedi a bênção dela para que eu pudesse recomeçar. Ela falou: ‘Eu te abençoo com todo gosto assim como Jacó abençoou seu filhos’. Chorei como uma criança”, recorda.
Jamil foi condenado a uma pena de 20 anos de prisão, mas cumpriu 3 anos e 4 meses e conseguiu progressão para o regime semiaberto. “Muitas pessoas ficaram inconformadas dizendo que eu subornei a Justiça, mas não houve nada disso. Tudo o que eu tinha eu deixei em procuração com algumas pessoas, mas depois que saí nunca fui atrás e nem pretendo ir. Deus me mostrou que aquele dinheiro não era abençoado.”
Ele critica o que chama de incapacidade de perdoar. “A sociedade não perdoa. As pessoas respeitam os bandidos que estão soltos. Eu morava em Foz no mesmo prédio do prefeito. Era respeitado. No fundo, era uma falsidade muito grande”, alfineta. Jamil diz que viu muita gente “usar a Bíblia” para enganar as pessoas, para parecer ser uma pessoa que não é, mas garante que não é o caso dele. Ele também critica o sistema penitenciário brasileiro e as políticas de combate às drogas. “As prisões são verdadeiras escolas do crime, o modelo é falido. Já a atuação do Estado no combate ao narcotráfico é fraca”, sugere.
VIDA SIMPLES
Finalmente livre, Jamil se viu mais uma vez sem ter para onde ir. Foi procurar ajuda em uma igreja evangélica onde ficou por quase dois anos, morando de favor no porão. Hoje, tira o sustento das palestras que faz. “Vivo primeiramente para louvar o senhor Jesus e para dizer que qualquer pessoa pode ser recuperada”, diz. Sem as regalias que o dinheiro do tráfico pode comprar, diz não sentir nenhuma saudade daquele tempo. “Não sou rico, tenho uma casa que há muito tempo estou juntando dinheiro para reformá-la e não consigo. Sou feliz assim.”